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Com o aproximar das primeiras badaladas da passagem de ano, surge a pergunta inevitável: quem quer uvas passas? À mesa, gera-se uma divisão tão profunda quanto a de um jogo de futebol aos olhos de duas fações de aficionados. De um lado, aqueles que cumprem zelosamente a tradição de comer as 12 passas à meia noite, pedindo um desejo por cada uma; do outro, os que as acham tão intragáveis que não se importam deixar a promessa de boa fortuna de lado.
Mas afinal, porque é que as uvas passas são presença habitual no réveillon? A tradição remonta aos finais do século XVIII, época em que a alta sociedade parisiense brindava ao ano novo com uvas frescas e champagne. Já no século XIX, o costume foi apropriado por outras capitais europeias, nomeadamente por Madrid. Houve, porém, dois episódios que fizeram com que essa tradição ganhasse forte expressão popular.
O primeiro está relacionado com uma decisão da Câmara Municipal de Madrid que, em 1880, quis cobrar uma taxa a todos os cidadãos que antecipassem e celebrassem o Dia de Reis nas ruas. A população, revoltada, reuniu-se na Puerta del Sol na noite de passagem de ano para ridicularizar a aristocracia madrilena, comendo uvas demasiado maduras em forma de protesto.
O segundo momento aconteceu em 1909, ano em que a produção de uva em Alicante foi invulgarmente alta. De forma a escoar os excedentes de uva, os produtores juntaram-se para criar uma campanha e vender pacotes de 12 uvas anunciadas como uvas da sorte. A moda pegou em Portugal até aos dias de hoje, para gáudio de uns e enfado de outros.
Há, contudo, quem queira convencer os detratores da uva passa de que nem todas são sensaboronas e chatas. «Se a uva for boa, a passa é boa». Maria Elvira fala com a certeza de quem trabalha há 34 anos com uvas e as conhece pelos seus nomes. «Esta que está aqui», aponta para um tabuleiro de triagem, «é a Crimson. É uma uva rosada». Ao contrário da Autumn Crisp, que é branca, e da Midnight Beauty, preta, a Crimson, explica esta alentejana de 57 anos, tem um toque ácido.
Salomé, ao lado, acompanha a conversa com atenção. Parando por uns momentos a tarefa de separar o engaço da uva, que desempenha com dedos ágeis de bordadeira, intervém: «A Midnight Beauty é a minha favorita. Parece goma. Quem prova esta passa, mesmo quem não gosta, fica a gostar». À afirmação segue-se um acenar de cabeça das companheiras de trabalho. A unanimidade dá enfase ao pregão de Maria Elvira. Se a uva for boa, a passa com certeza também o será.
Foi isso que a Vale da Rosa, a primeira empresa em Portugal a produzir uva sem grainha, também percebeu. «Há muita gente que acha que a uva sem grainha é uma coisa geneticamente modificada, mas não é. Há muitas variedades sem grainha», elucida Susana Ferreira, Diretora Comercial e de Marketing desta empresa familiar fundada em 2000.
Das 26 variedades plantadas nos 270 hectares da Vale da Rosa, 23 são de uva sem grainha. E se a empresa mantém três variedades com grainha, deve-se apenas ao facto de uma fatia do mercado português continuar avessa à ideia de comer uvas sem cuspir o caroço.
Mas voltemos à uva passa e ao momento em que a Vale da Rosa fez as primeiras experiências com um produtor vizinho de bagas goji, já lá vão praticamente sete anos. O resultado foi tão bom, que rapidamente a empresa montou toda a linha de produção necessária para fazer passas suculentas, capazes de converter todos aqueles que as renegam na passagem de ano.
«Esta é também uma forma de reduzirmos o desperdício», nota Susana, explicando que para cada quilo de passas são precisos cinco quilos de uva fresca. Os bagos que passam à categoria de passa, ou seja, aqueles que não têm calibre suficiente ou apresentam pequenos defeitos para entrarem no mercado da uva de mesa, são estendidos ao sol numa cama de ferro. É aí que iniciam o seu processo de transformação.
«Geralmente deixamos as uvas 10 dias ao sol e depois passamo-las para uma câmara de secagem, onde ficam durante um a dois dias, entre os 40 e os 50 graus». A olho nu, percebe se que a uva está pronta quando a pele está mais encarquilhada, mas há controladores de humidade que evitam qualquer análise precipitada: «Quando a uva atinge o intervalo de 15 a 18 graus de humidade, está pronta para sair», explica Susana.
Segue-se então o momento da seleção, totalmente manual. Num dia bom, Salomé, Maria Elvira e as suas colegas conseguem separar entre 15 a 20 quilos de uva passa cada uma. O processo é delicado, mas quem já faz disto vida há mais de duas décadas, sabe detetar à primeira quando a polpa está «mais mole» do que é suposto ou quando um pequeno buraco deforma uma das faces do fruto.
A essas uvas com ligeiros defeitos é-lhes dado um final feliz: «fazemos o nosso vinagre de uva passa», diz Susana Ferreira, abrindo as portas de uma antiga vacaria que hoje serve de adega. Lá moram 20 pipas de Vinho do Porto, fruto de uma experiência auspiciosa de envelhecimento de vinagre balsâmico de uva passa.
Para já, esse vinagre ainda não está no mercado. Aquele que pode ser encontrado, e que é feito sem envelhecimento, é vendido na loja da Vale da Rosa, em garrafas de 110 mililitros. Como as são quantidades rapidamente Leyenda: O vingare feito a partir de uva passa é vendido na loja da Vale da Rosa residuais, esgotam.
Já com as uvas passas, não existe o risco de falharem na passagem de ano, mesmo tendo as sete toneladas de produção desta temporada ficado aquém do desejado. Reservemos então um dos doze desejos para que a natureza seja generosa no próximo ano e para que em 2026 continuemos a acompanhar o brinde da última noite de dezembro com passas que sabem a goma.