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Descer à cozinha da Mexicana é como entrar pela maquinaria que faz trabalhar um relógio. A pastelaria lisboeta, na Praça de Londres, é conhecida pela gaiola dos periquitos, pelos paineis de azulejos desenhados por Querubim Lapa e, no Natal, pelas filas e caixas na sala interior, um caos organizado de gente a levar fritos panados em açúcar para casa. Toda esta beleza está assente num labirinto de salas e corredores revestidos aos mais básicos azulejos brancos, muito alumínio em bancadas e fritadeiras industriais que se ligam à 1h30 da manhã. A essa hora, Celeste Rosa, pasteleira, chega a este submundo para, com um ajudante, fazerem todos os bolos na montra da Mexicana.
A empreitada de cada dia do ano não se suspende porque é Natal. Celeste Rosa continua a tender as línguas de veado e o minúsculo sortido que, peça a peça, demora demasiado tempo a fazer para ser comido tão rápido. É ela que, enquanto bebe a bica da 1h30 da manhã (logo à chegada, porque o padeiro lhe deixa a máquina ligada) decide o que vai para a vitrine nesse dia. “Gosto de analisar os clientes, ver o que se vendeu mais e ir testando umas ideias”, conta enquanto, às 8h, vira tabuleiros nos fornos, põe os ingredientes de uma massa de brioche na amassadeira industrial, leva filhoses para a estufa — tudo ao mesmo tempo, como se fossem a mesma tarefa.
Como estuda as montras do dia anterior há oito anos na Mexicana, sabe que, ao contrário das luzes de Natal pela rua, não vale a pena fazer grandes quantidades de doces de Natal logo no início do mês. “Primeiro é só para matar a saudade”, diz. Frita filhoses, rabanadas e sonhos só aos fins de semana, uma ou duas dúzias a cada dia. A 15 de dezembro, as fritadeiras passam a estar ligadas todos os dias e na véspera da consoada é preciso chamar reforços: Celeste Rosa deixa as massas prontas para um batalhão fritar. “Eu enjoei isto tudo, só gosto das filhoses e são também o que gosto mais de fritar”, comenta o exemplo vivo de que é possível adorar o que se faz sem gostar do produto do trabalho.
No meio das maratonas pela cozinha, a fritura das filhoses, por volta das 5h30, parece o momento dos alongamentos no final de um circuito de cross fit. Celeste tem de parar junto da fritadeira para moldar as bolas de massa que ficaram a levedar, para as pôr no óleo de seguida e para as ir virando.
Filhoses — ou o polémico singular filhó — querem dizer muita coisa diferente de Norte a Sul e nas ilhas. Por todo o país, este e outros doces fritos são excesso festivo e a riqueza das suas massas, pela gordura e pelo açúcar, é um consolo adequado ao tempo frio. Nuns sítios comem-se mais pelo Natal, especialmente a Norte e no centro, noutros são o doce do carnaval; numas terras chamam-se de perna, noutras são de forma, estendidas ou enroladas. Na Mexicana, Celeste faz as filhoses de joelho, que ganharam este nome por serem moldadas no joelho das mulheres sentadas e ficarem com uma película fina ao centro e um rebordo gordo. Celeste molda-as com a mão e é este o máximo de delicadeza que tem tempo para dar aos fritos de Natal. Com os sortidos e outras pastelarias para entregar, não há tempo para as minúcias dos coscorões, que têm de ser tendidos muito finos e fritos logo de seguida, ou das azevias, uma dor de cabeça da massa ao recheio.
Na Mexicana, como em muitas pastelarias que mantêm o fabrico próprio de fritos de Natal, as azevias são a exceção. Compram-nas fora, a pequenas fábricas ou a cozinheiras por conta própria. É um daqueles casos em que o aviso de que não é “caseiro”, ou seja, “feito nesta casa”, não deve demover o cliente de experimentar.
Ofélia Santos, de Loures, nos arredores de Lisboa, começa em novembro a preparar as encomendas de azevias e a sua receita trabalhosa explica que nem todos as façam. “Descasco o grãozinho todo, não ficam pelezinhas nenhumas. Toda a gente diz que fica muito diferente. É a minha mãe, de 80 e tal anos, que me ajuda a descascar o grão todo”, explica.
Depois do recheio de grão liso, que congela para preparar a época de maior trânsito, a massa tem de ser feita de raíz a cada lote, com vinho branco, água, banha e farinha; leveda e só depois pode ser esticada. A receita não é de família, nem era hábito em sua casa comerem-se azevias mas, curiosa com essas empanadilhas doces, foi experimentando umas receitas de revistas, aperfeiçoando, e chegou à sua. Ganhou tanta fama que uma pastelaria da zona lhe pede que vá passar as tardes de quarta-feira à sua cozinha para aprovisionar as arcas frigoríficas. Os gerentes do sítio só põem as azevias na vitrine ao fim de semana, se não, voam. As três mil peças que faz, por ano, para esta pequena casa parecem poucas.
Uma mesa de Natal farta, com tudo, mesmo que com pouco de cada doce, dá trabalho, confirma Ofélia, e por isso tem mais encomendas de sonhos, coscorões e rabanadas de ano para ano. Os fritos de cozinheiras independentes não perdem espaço na capital e subúrbios, ainda está bem presente a manualidade do pasteleiro.
O mesmo acontece com os doces de algumas grandes casas, como a Mexicana: Celeste Rosa diz que não sabe trabalhar com ovos pasteurizados, com gemas e claras separadas em pacotes, e deixa o pão secar de um dia para o outro para as rabanadas, tal como faria em casa. “Isto é como fazer arroz. Quando se tem visitas, põe-se mais arroz e mais água”. A receita das filhoses é a da mãe e todas outras são a coleção dos grandes hits que foi recolhendo ao longo de 30 anos a trabalhar em pastelarias.
Tem as quantidades de cor e se lhe falha alguma coisa, vai ao caderno que está sempre fechado no cacifo. “Isto é só mesmo a tradição, não há que inventar mais nada”, sentencia, sem admitir extravagâncias além do Bolo Rainha. Para uns bolos à fatia ou umas bolachas com forma de desenhos animados tira ideias do YouTube, mas para o resto mantém-se fiel ao que o público conhece e aprova. “Sabe o que se vende melhor o ano todo? O bolo inglês”, diz com surpresa. Frutas cristalizadas, frutos secos, passas e uma massa fofa com um leve tom alcoólico: só podem ser saudades do bolo rei.
Mexicana. Avenida Guerra Junqueiro, 30C. Lisboa. Telefone: 21 848 6117