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Uma coisa que se fez e saiu exatamente como planeado é um acontecimento raro para a humanidade — e ainda mais para a fatia da humanidade que trabalha em restauração. As tendências, o poder de compra, o turismo e outros tantos fatores levam donos de restaurantes e chefs de cozinha a adaptarem os seus projetos ao mesmo ritmo a que os põem em prática. Nada disso aconteceu no Canalha. “É completamente o que imaginei. Só não esperava que colasse tão rápido”, diz João Rodrigues, chef e sócio do restaurante que, desde a abertura, em outubro de 2023, se tornou uma das sensações da cena gastronómica lisboeta. Depois de décadas escondido “no buraco” do fine dining, João Rodrigues fez o seu restaurante favorito.
Com um balcão em pedra, mesas grandes separadas da sala por biombos de madeira e pratos tão simples como salada russa e pastéis de bacalhau, o Canalha tornou-se uma espécie de clássico instantâneo da restauração lisboeta. Não terá sido indiferente a expectativa que o rodeava. Em 2022, João Rodrigues abandonou o restaurante Feitoria, também em Lisboa (dentro do Altis Belém Hotel & Spa), onde esteve 13 anos. Aí foi chef de cozinha por 11 anos, reconquistando, a cada temporada, a distinção que herdou. Ganhou vários outros prémios e iniciou um processo de pesquisa e divulgação dos produtos e produtores portugueses que valorizou o seu trabalho dentro da cozinha. Um ano depois do encerramento deste ciclo, abriu o Canalha com o grupo de restauração Paradigma, e prometeu um “restaurante diário, de bairro”.
Na Rua da Junqueira, entre os bairros do Restelo, Ajuda e Alcântara, os almoços parecem cumprir o prometido. Sozinhos ao balcão ou em grupos nas mesas de quatro, trabalhadores engravatados pedem os pratos do dia, que vão dos 12€ aos 18€, da Massada de peixe à segunda, ao Bacalhau à Brás da sexta. Pelo meio da semana há Ervilhas com ovos escalfados e Iscas, sempre acamados pelas sopas de Adelaide — sobre a sua Juliana, Miguel Esteves Cardoso escreveu: “fez-me chorar por nunca ter comido fora de casa uma Juliana que prestasse, a não ser aquela”. “Não sei como é que ela faz aquilo”, comenta João Rodrigues quando se despede da cozinheira que era responsável pelas refeições da equipa do Altis e que trouxe para o Canalha.
À noite, a música e as pessoas fazem uma sala tão acolhedora quanto barulhenta; a televisão está ligada em dias de bola. Saem pratos feitos conforme a montra da entrada, uma reminiscência das marisqueiras e dos restaurantes de grelha da cidade; a Lula com manteiga de ovelha (prato adaptado do Feitoria), a Tortilha aberta de camarão ou o Bife raspado de presa de vaca arouquesa, servido com batata palha e maionese, não têm descanso. Tornaram-se ex-líbris que o chef não ousa tirar da carta.
“As pessoas pensavam que eu só sabia fazer o que se faz no Feitoria. Como sempre vivi na cena dos restaurantes estrelados, sinto que sempre vivi numa bolha relativamente pequena. Muita gente me disse que [abrir este restaurante] era um downgrade. Mas eu sabia que há muita gente cansada de um certo modelo de fine dining”, resume João Rodrigues esta transição.
A experiência nas cozinhas de topo verteu-se na forma de organizar a equipa, na técnica com que se trabalha o produto e, claro, no próprio produto, que há muito faz parte da identidade de João Rodrigues enquanto cozinheiro. O resto — o ambiente, o serviço com leveza, a comida entre a memória e a inspiração — vem simplesmente do que gosta enquanto amante de restaurantes.
“Fizeste o teu restaurante preferido”, intervém Vânia Rodrigues, sua mulher e parceira em vários projectos. “Este restaurante já estava pensado dentro de mim”, concorda o chef, para mais à frente confessar: “Inspirei-me muito nas memórias que tenho do restaurante Europa, em Campo de Ourique: uma grelha à janela, um balcão até ao fundo e depois um comedor, à espanhola. Queria fazer um restaurante a lembrar estes restaurantes de bairro, mas que não fosse revivalista; com produto reconhecível, onde as pessoas se sentissem tão em casa que parecesse que o restaurante sempre esteve aqui”.
Lembrar sem revivalismos é a definição de dar continuidade a uma herança — perdendo umas coisas, acrescentando outras, mas sem deixar morrer. No caso do Canalha, sublinha-se uma visão ibérica da restauração. João Rodrigues fica elétrico quando lhe dizem que tem um restaurante espanhol, diz que não é justo e argumenta em contrário. Mas consegue ver os fatores de aproximação: é verdade que gosta de comer em Espanha, que a história dos restaurantes lisboetas é muito influenciada pelos galegos, por exemplo, e que produto ibérico, sobretudo o raiano, diz presente no Canalha.
Nesta cozinha ideal de João Rodrigues alguns dos pratos acompanham-se de referências na carta à Dona Otávia, que produz enchidos e fumeiro no Cano, Portalegre, às Carnes Jacinto, de Esposende, ou ao Hortelão do Oeste. É pelo produto que João Rodrigues quer que conheçam o Canalha. Dedicou-se à pesquisa e divulgação de produtores nos últimos anos e agora “sem fundamentalismos, é o grosso do meu trabalho na cozinha”, afirma.
A caminhada começou da necessidade e assumiu o nome Projecto Matéria. “Começo no Feitoria a pensar o que é a minha identidade. Sou português, em Lisboa, estou a tentar ter uma filosofia assente na minha cultura e pergunto-me onde vou buscar produtos que tenham alguma coisa a ver com esta filosofia. Eu não queria os produtos certificados, queria produtos feitos por pessoas apaixonadas”, recorda. Uns tempos depois destas inquietações atravessou-se com o compromisso que, na época, fez notícias de jornal: no Congresso Nacional dos Cozinheiros de 2017 disse que ia construir um site para mapear produtores portugueses dentro de um mês.
Não havia nada feito. Vânia Rodrigues recorda um pânico inicial. Acabou organizando todas as burocracias e fazendo a produção das viagens necessárias para recolher histórias para o prometido site. Depois de uma primeira fase de investimento do casal, o Turismo de Portugal e (mais tarde) a Comissão Nacional da Unesco e a ICEL financiaram o projeto. “Começámos a perceber que escrever sobre as pessoas era muito mais interessante. São elas que acrescentam valor ao produto”, diz Vânia Rodrigues.
Se a ideia inicial era criar uma base de dados útil a cozinheiros que se quisessem fundar no território português, o Projecto Matéria acabou por ser muito mais importante para os próprios produtores, nota Vânia: “Valorizou-os, mostrou-lhes que se calhar podem receber pessoas, alguns começaram a comunicar nas redes sociais e criou uma rede entre os produtores”, exemplifica.
Em 2023, outra empreitada anunciada de impulso pelo chef e que Vânia tornou possível: o projeto João Rodrigues em Residência. “O sucesso viveu muito da experiência em logística e organização de eventos da Vá”, diz João Rodrigues. Nos 12 meses do ano visitaram 12 regiões do território nacional e convidaram o público em geral a participar. A cada edição visitaram produtores, restaurantes, convidaram chefs a cozinhar, com produtos locais, jantares em lugares tão surpreendentes como uma sé catedral, um forte ou umas termas.
A cronologia parece indicar um caminho planeado e este repertório faz crer que João Rodrigues quer uma nova definição para o que é ser chef de cozinha. Garante, no entanto, que nunca houve um grande plano a longo prazo. “Fiz tudo isto porque cheguei a uma altura em que quero fazer o que me dá gozo. Passei 25 anos a trabalhar para os outros. O Canalha parte dessa ideia. Especialmente ao almoço sinto-me feliz a cozinhar neste restaurante, tenho pena de não estar a comer na sala”.
“É um restaurante para as pessoas falarem alto, para curtirem. Estive demasiado tempo enfiado num buraco, caía um talher e toda a gente deitava as mãos à cabeça — até eu”, lembra. “Agora o que eu quero é extravasar as quatro paredes”, conclui. O próximo restaurante, o Monda, será uma experiência imersiva, “global, extra restaurante”, diz sem mais pormenores. Por enquanto, instalou na Junqueira a alegria infantil de comer ótimos panados coroados com uma mousse de chocolate exemplar e, por isso, chamou-lhe Canalha.
Canalha. Rua da Junqueira, 207, Lisboa. Telefone: 962 152 742