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No Canalha de João Rodrigues fala-se alto

Restaurante “Canalha” (Lisboa)

No Canalha de João Rodrigues fala-se alto — e comem-se altos panados

13/11/2024 –

Atualizada: 05/11/2024

Texto: Catarina Moura

Fotografia: Marisa Cardoso

Com pratos do dia tradicionais e uma carta cheia de inspiração e bons produtos, o Canalha convoca os grandes restaurantes lisboetas. João Rodrigues montou o seu restaurante de sonho. É mais uma adição ao curioso repertório do chef, depois de reconhecimento internacional e eventos de divulgação de produtores.

Uma coisa que se fez e saiu exatamente como planeado é um acontecimento raro para a humanidade — e ainda mais para a fatia da humanidade que trabalha em restauração. As tendências, o poder de compra, o turismo e outros tantos fatores levam donos de restaurantes e chefs de cozinha a adaptarem os seus projetos ao mesmo ritmo a que os põem em prática. Nada disso aconteceu no Canalha. “É completamente o que imaginei. Só não esperava que colasse tão rápido”, diz João Rodrigues, chef e sócio do restaurante que, desde a abertura, em outubro de 2023, se tornou uma das sensações da cena gastronómica lisboeta. Depois de décadas escondido “no buraco” do fine dining, João Rodrigues fez o seu restaurante favorito.

O Canalha abriu em Outubro de 2023 e tornou-se um clássico instantâneo
O Canalha abriu em Outubro de 2023 e tornou-se um clássico instantâneo.

Com um balcão em pedra, mesas grandes separadas da sala por biombos de madeira e pratos tão simples como salada russa e pastéis de bacalhau, o Canalha tornou-se uma espécie de clássico instantâneo da restauração lisboeta. Não terá sido indiferente a expectativa que o rodeava. Em 2022, João Rodrigues abandonou o restaurante Feitoria, também em Lisboa (dentro do Altis Belém Hotel & Spa), onde esteve 13 anos. Aí foi chef de cozinha por 11 anos, reconquistando, a cada temporada, a distinção que herdou. Ganhou vários outros prémios e iniciou um processo de pesquisa e divulgação dos produtos e produtores portugueses que valorizou o seu trabalho dentro da cozinha. Um ano depois do encerramento deste ciclo, abriu o Canalha com o grupo de restauração Paradigma, e prometeu um “restaurante diário, de bairro”.

Memórias, inspiração e sopas que fazem chorar

Na Rua da Junqueira, entre os bairros do Restelo, Ajuda e Alcântara, os almoços parecem cumprir o prometido. Sozinhos ao balcão ou em grupos nas mesas de quatro, trabalhadores engravatados pedem os pratos do dia, que vão dos 12€ aos 18€, da Massada de peixe à segunda, ao Bacalhau à Brás da sexta. Pelo meio da semana há Ervilhas com ovos escalfados e Iscas, sempre acamados pelas sopas de Adelaide — sobre a sua Juliana, Miguel Esteves Cardoso escreveu: “fez-me chorar por nunca ter comido fora de casa uma Juliana que prestasse, a não ser aquela”. “Não sei como é que ela faz aquilo”, comenta João Rodrigues quando se despede da cozinheira que era responsável pelas refeições da equipa do Altis e que trouxe para o Canalha.

A famosa Adelaide, cozinheira que levou Miguel Esteves Cardoso às lágrimas com a sua sopa juliana
A famosa Adelaide, cozinheira que levou Miguel Esteves Cardoso às lágrimas com a sua sopa juliana.

À noite, a música e as pessoas fazem uma sala tão acolhedora quanto barulhenta; a televisão está ligada em dias de bola. Saem pratos feitos conforme a montra da entrada, uma reminiscência das marisqueiras e dos restaurantes de grelha da cidade; a Lula com manteiga de ovelha (prato adaptado do Feitoria), a Tortilha aberta de camarão ou o Bife raspado de presa de vaca arouquesa, servido com batata palha e maionese, não têm descanso. Tornaram-se ex-líbris que o chef não ousa tirar da carta.

A montra com marisco lembra as tradicionais marisqueiras
A montra com marisco lembra as tradicionais marisqueiras.

“As pessoas pensavam que eu só sabia fazer o que se faz no Feitoria. Como sempre vivi na cena dos restaurantes estrelados, sinto que sempre vivi numa bolha relativamente pequena. Muita gente me disse que [abrir este restaurante] era um downgrade. Mas eu sabia que há muita gente cansada de um certo modelo de fine dining”, resume João Rodrigues esta transição.

A experiência nas cozinhas de topo verteu-se na forma de organizar a equipa, na técnica com que se trabalha o produto e, claro, no próprio produto, que há muito faz parte da identidade de João Rodrigues enquanto cozinheiro. O resto — o ambiente, o serviço com leveza, a comida entre a memória e a inspiração — vem simplesmente do que gosta enquanto amante de restaurantes.

O Canalha está aberto todos os dias e serve almoços e jantares
O Canalha está aberto todos os dias e serve almoços e jantares

“Fizeste o teu restaurante preferido”, intervém Vânia Rodrigues, sua mulher e parceira em vários projectos. “Este restaurante já estava pensado dentro de mim”, concorda o chef, para mais à frente confessar: “Inspirei-me muito nas memórias que tenho do restaurante Europa, em Campo de Ourique: uma grelha à janela, um balcão até ao fundo e depois um comedor, à espanhola. Queria fazer um restaurante a lembrar estes restaurantes de bairro, mas que não fosse revivalista; com produto reconhecível, onde as pessoas se sentissem tão em casa que parecesse que o restaurante sempre esteve aqui”.

Lembrar sem revivalismos é a definição de dar continuidade a uma herança — perdendo umas coisas, acrescentando outras, mas sem deixar morrer. No caso do Canalha, sublinha-se uma visão ibérica da restauração. João Rodrigues fica elétrico quando lhe dizem que tem um restaurante espanhol, diz que não é justo e argumenta em contrário. Mas consegue ver os fatores de aproximação: é verdade que gosta de comer em Espanha, que a história dos restaurantes lisboetas é muito influenciada pelos galegos, por exemplo, e que produto ibérico, sobretudo o raiano, diz presente no Canalha.

Legumes da estação grelhados, gema e papada de porco
Legumes da estação grelhados, gema e papada de porco
Pudim flan
Pudim flan
Mousse de chocolate e pó de café
Mousse de chocolate e pó de café
Pimentos de forno
Pimentos de forno

Uma outra definição de chef

Nesta cozinha ideal de João Rodrigues alguns dos pratos acompanham-se de referências na carta à Dona Otávia, que produz enchidos e fumeiro no Cano, Portalegre, às Carnes Jacinto, de Esposende, ou ao Hortelão do Oeste. É pelo produto que João Rodrigues quer que conheçam o Canalha. Dedicou-se à pesquisa e divulgação de produtores nos últimos anos e agora “sem fundamentalismos, é o grosso do meu trabalho na cozinha”, afirma.

A caminhada começou da necessidade e assumiu o nome Projecto Matéria. “Começo no Feitoria a pensar o que é a minha identidade. Sou português, em Lisboa, estou a tentar ter uma filosofia assente na minha cultura e pergunto-me onde vou buscar produtos que tenham alguma coisa a ver com esta filosofia. Eu não queria os produtos certificados, queria produtos feitos por pessoas apaixonadas”, recorda. Uns tempos depois destas inquietações atravessou-se com o compromisso que, na época, fez notícias de jornal: no Congresso Nacional dos Cozinheiros de 2017 disse que ia construir um site para mapear produtores portugueses dentro de um mês.

João Rodrigues no restaurante com o qual sempre sonhou
João Rodrigues no restaurante com o qual sempre sonhou

Não havia nada feito. Vânia Rodrigues recorda um pânico inicial. Acabou organizando todas as burocracias e fazendo a produção das viagens necessárias para recolher histórias para o prometido site. Depois de uma primeira fase de investimento do casal, o Turismo de Portugal e (mais tarde) a Comissão Nacional da Unesco e a ICEL financiaram o projeto. “Começámos a perceber que escrever sobre as pessoas era muito mais interessante. São elas que acrescentam valor ao produto”, diz Vânia Rodrigues.

Mesas para quatro e um longo balcão, uma sala tão acolhedora quanto ruidosa — mas em bom
Mesas para quatro e um longo balcão, uma sala tão acolhedora quanto ruidosa — mas em bom

Se a ideia inicial era criar uma base de dados útil a cozinheiros que se quisessem fundar no território português, o Projecto Matéria acabou por ser muito mais importante para os próprios produtores, nota Vânia: “Valorizou-os, mostrou-lhes que se calhar podem receber pessoas, alguns começaram a comunicar nas redes sociais e criou uma rede entre os produtores”, exemplifica.

Em 2023, outra empreitada anunciada de impulso pelo chef e que Vânia tornou possível: o projeto João Rodrigues em Residência. “O sucesso viveu muito da experiência em logística e organização de eventos da Vá”, diz João Rodrigues. Nos 12 meses do ano visitaram 12 regiões do território nacional e convidaram o público em geral a participar. A cada edição visitaram produtores, restaurantes, convidaram chefs a cozinhar, com produtos locais, jantares em lugares tão surpreendentes como uma sé catedral, um forte ou umas termas.

O Canalha fica na Rua da Junqueira, que liga Alcântara a Belém
O Canalha fica na Rua da Junqueira, que liga Alcântara a Belém
O chefe pôs uma grelha à janela a lembrar os restaurantes de bairro
O chefe pôs uma grelha à janela a lembrar os restaurantes de bairro

A cronologia parece indicar um caminho planeado e este repertório faz crer que João Rodrigues quer uma nova definição para o que é ser chef de cozinha. Garante, no entanto, que nunca houve um grande plano a longo prazo. “Fiz tudo isto porque cheguei a uma altura em que quero fazer o que me dá gozo. Passei 25 anos a trabalhar para os outros. O Canalha parte dessa ideia. Especialmente ao almoço sinto-me feliz a cozinhar neste restaurante, tenho pena de não estar a comer na sala”.

“É um restaurante para as pessoas falarem alto, para curtirem. Estive demasiado tempo enfiado num buraco, caía um talher e toda a gente deitava as mãos à cabeça — até eu”, lembra. “Agora o que eu quero é extravasar as quatro paredes”, conclui. O próximo restaurante, o Monda, será uma experiência imersiva, “global, extra restaurante”, diz sem mais pormenores. Por enquanto, instalou na Junqueira a alegria infantil de comer ótimos panados coroados com uma mousse de chocolate exemplar e, por isso, chamou-lhe Canalha.

Canalha. Rua da Junqueira, 207, Lisboa. Telefone: 962 152 742