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Alessandre Montagne, chef jefe

Restaurante Cícero em Lisboa

Brasil e França juntam-se à mesa em Campo de Ourique

17/01/2025

Texto: Clara Silva

Fotografia: Ana Brígida

A brasileira Alessandre Montagne, que em 2025 terá um restaurante no Museu do Louvre, é a nova head chef do Cícero, em Lisboa.

Alessandra Montagne costumava vender coxinhas com um cesto pelas ruas de Poté, a pequena cidade de Minas Gerais onde cresceu. Na verdade, nasceu no Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, mas, oito dias depois, a mãe deixou-a ao cuidado dos avôs, que já tinham nove filhos. “Eu vendia na rua, foram anos muito difíceis da minha vida que coloquei debaixo do tapete”, recorda a chef brasileira de 47 anos. “Mas chega uma hora que fica muito difícil de guardar. É um silêncio barulhento, sabe? Então, decidi que a coxinha ia voltar à minha vida, mas de uma maneira diferente. Hoje, todos os meus restaurantes têm coxinha.”

imagen doble alessandra y el interior del restaurante
Alessandra Montagne, de 47 anos, nasceu no Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, e aprendeu a cozinhar com a avó e com as tias

O Cícero, em Lisboa, onde Alessandra é head chef desde Novembro do ano passado, não é excepção. As coxinhas, ao lado do pão de queijo com caviar e do pastel de nata de couve-flor, fazem parte das entradas do bistrot em Campo de Ourique, com um menu de degustação que começa nos 65 euros por pessoa.

mesa en mitad del servicio
Foi nesta sala que o presidente Lula da Silva almoçou em Novembro de 2022, ano em que o restaurante abriu

No ano em que abriu, em 2022, o restaurante deu nas vistas por ter sido escolhido por Lula da Silva para um almoço à chegada a Lisboa. Paulo Dalla Nora, empresário, colecionador de arte e um dos sócios do Cícero, fez o convite ao, na altura, recém-eleito presidente do Brasil, que aceitou. “Ele também é pernambucano como eu e como o Cícero”, explica, referindo-se ao pintor modernista Cícero Dias, que dá nome ao espaço.

Imagen doble con mousse de chocolate y terraza
O caldinho de feijão preto é um dos momentos do menu de degustação do Cícero, bistrot em Campo de Ourique

Paulo chegou a Lisboa também em 2022 e só meses depois, em contentores, chegava a sua colecção de arte, que agora anima as paredes das três salas do restaurante, uma no piso térreo, a recriar um bistrot parisiense – ou não fosse Campo de Ourique o bairro mais francês da cidade – e duas na cave, onde fica a cozinha, outrora o armazém de uma loja de roupa.

Mesa larga con cocina abierta
O restaurante tem três salas, duas delas na cave, tal como a cozinha. O espaço era o armazém de uma loja de roupa

Foi na sala mais recôndita, com um oratório do século XVIII, um enorme painel de madeira com personagens do folclore do Nordeste do Brasil e uma pintura de Lula Cardoso Ayres com mulheres baianas, que Lula da Silva e a sua comitiva terão almoçado numa tarde de Novembro.

Decoración del interior del restaurante
Nas paredes está a colecção de arte de um dos sócios, Paulo Dalla Nora, com quadros de Cícero Dias e outras relíquias, como um oratório do século XVIII

É, no entanto, no andar de cima do restaurante que se esconde a “obra mais significativa” da colecção de Paulo. “Uma aguarela de Cícero Dias, da década de 20”, orgulha-se. “Foi a primeira obra que comprei, em 1997, aos 22 anos. É a única obra que está aqui no restaurante do período antes de Cícero ir para Paris.”

O pintor Cícero Dias, que morreu em Paris em 2003, e a chef Alessandra Montagne, que se mudou para a capital francesa em 1999, aos 22 anos, nunca se cruzaram. “Mas é como se a Alessandra fosse o Cícero Dias de hoje”, comenta Paulo. “Um na pintura, outra na gastronomia. A Alessandra também saiu do Brasil para desenvolver a arte dela em Paris e contar a história do Brasil, com a sensibilidade e a percepção dela. Os dois vêm de Brasis muito diferentes. Cícero era um aristocrata, é um país de contrastes.”

Cocina visible para la clientela
Ana Carolina Silva (à esquerda), outra das sócias do restaurante, é a chef executiva, o braço direito de Alessandra em Lisboa

Alessandra, a head chef do Cícero, aprendeu a cozinhar com a avó e com as tias na roça. “Lá as mulheres são educadas para ser mães de família, para saber cozinhar, para cuidar da casa”, diz. O destino quis que fosse estudar Francês para Paris, onde a sua mãe morava, mas não lhe passava pela cabeça tornar-se chef. “Dos meus amigos, eu era a única que sabia cozinhar e toda a gente dizia que devia abrir um restaurante.”

imagen doble de dos emplatados elegantes
Em Junho deste ano, Alessandra Montagne vai abrir um restaurante no Museu do Louvre, em Paris, com o chef Alain Ducasse

Na altura, a ideia parecia-lhe um “atrevimento”, sobretudo no “país da gastronomia”, mas acabou por concretizar-se. “Sempre me senti valorizada quando fazia um prato para as pessoas e isso era muito bom. Em criança nunca fui valorizada, nem quando tinha boa nota, porque era a minha obrigação.”

imagen doble de emplatado y aceite de oliva
A emblemática sobremesa da casa (à esquerda), é uma homenagem à pintura de Cícero Dias

Na capital francesa, trabalhou com chefs reconhecidos como William Ledeuil ou Adeline Grattard até abrir o seu primeiro restaurante, o Tempero, em 2012. “Funcionou muito bem”, conta. “Deu rápido muito certo.” De tal maneira que em 2020 abria um segundo espaço, o Nosso, e no ano seguinte a L’Épicerie Tempero.

Com tantos projectos, e a preparar-se para, em Junho, assumir o comando de um restaurante no Museu do Louvre com o chef Alain Ducasse, conseguiu ter tempo para dar um ar da sua graça em Lisboa e assinar a carta do Cícero no final de 2024.

O convite partiu dos donos do restaurante alfacinha. Além de Paulo Dalla Nora, também Ana Carolina Silva, a outra sócia, rendeu-se aos pratos de Alessandra. Aliás, é ela que os replica enquanto chef executiva e toma conta da cozinha quando Alessandra está em Paris. “Às vezes até melhor do que eu”, brinca a brasileira.

Panqueques
O pastel de nata de couve-flor, uma das entradas, também está no menu de degustação, que começa nos 65 euros e vai até aos 95 euros

Um dos pratos mais emblemáticos do menu é a poitrine de porco com aipo fumado e beterraba (42 euros), que já pertencia à carta do primeiro restaurante de Alessandra, agora numa versão aprimorada. “Foi um pouco graças a ele que Paris me descobriu”, confessa a chef.

Mesa con decoración y luz cenital
O restaurante tem lugar para 22 pessoas, divididas pelas três salas

A ideia da carta é fundir a gastronomia francesa com a brasileira, com ingredientes portugueses, de produtores locais. “Trouxemos um menu que refletisse a história da Alessandra, mas que tivesse um pouco de Portugal”, resume

emplatado new couisine con gambas
As coxinhas de frango (à esquerda) que outrora Alessandra vendeu nas ruas de Minas Gerais fazem parte da carta, tal como o carabineiro (à direita)

Além da poitrine, o velouté de cogumelos e sarraceno (22 euros) é um dos pratos mais elogiados, tal como o colorido carabineiro com risoto de cevada e abóbora (58 euros) ou o bacalhau com couve, beurre blanc de champanhe e arroz negro (42 euros). A homenagem a Cícero Dias, o protagonista da casa, faz-se, sobretudo, com a sobremesa, uma variação de limão com formas geométricas (18 euros), a replicar um quadro do pintor modernista.

Cícero. Rua Saraiva de Carvalho, 171, Lisboa. Domingo a quinta-feira das 19h15 às 23h45; sexta e sábado das 19h15 às 00h00. Telefone: 966 913 699