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A estética programada tomou conta dos nossos pratos, dizem os donos de restaurantes e cozinheiros. A fotografia de um prato nas redes sociais escolhe o que o cliente pede, mas nem todos estão disponíveis para se entregar à ditadura. “Nós somos corajosos o suficiente para não fazer pratos bonitos. Há coisas que temos de aceitar que não vão ser visualmente apelativas”, diz José Neves, chef do Ciclo, no Largo das Olarias, Lisboa.
Não se dá o caso de os pratos do Ciclo serem trambolhos, mas de vez em quando José tem vontade de pegar em sangue e encher morcelas pela primeira vez, ou fazer um molho com tinta de choco e, quando é assim, não há por onde fazer estes pratos caber no cânone estético das redes.
Sejam bonitos ou visualmente desafiantes, os pratos do Ciclo querem estar entre a tradição e a redescoberta dos ritmos da natureza. José Neves e Cláudia Abreu da Silva são o casal à frente deste restaurante e, há pouco mais de um ano, constroem uma ideia renovada de restaurante familiar — são apenas quatro pessoas a trabalhar com criatividade, aproximações ao fine dining e à cozinha sem desperdício.
A experiência de Cláudia e José em França abriu-lhes horizontes dentro da restauração. Para Cláudia foi a descoberta do “maravilhoso mundo dos vinhos naturais”. Trabalhavam no grupo Septime, de restaurantes de alta cozinha e com forte vertente vínica. Cláudia “só queria passar as folgas na cave a provar vinhos”.
Foram três anos em Paris, de onde trouxeram o serviço feito com extremo rigor e outro tanto de descontração, diz — um tempo interrompido pela pandemia e a mudança para a região de Champanhe.
Se Cláudia já se tinha apaixonado pelos vinhos — algo que define hoje o seu serviço de sala no Ciclo — com a mudança para o campo, foi a vez de José ganhar um novo encanto no trabalho que já fazia há cerca de dez anos. “Foi aquilo que precisava.
“Foi aquilo que precisava. Foi estar na natureza, nunca tinha estado — sou de Carcavelos, um betinho da linha. Foi perceber o ciclo das coisas. Encontrei-me como cozinheiro”, diz José Neves sobre a experiência de trabalhar no Le Garde Champêtre, um fine dining no meio de uma quinta e que se fornece maioritariamente na produção de vegetais, frutas e alguns animais que aí se faz.
Ao voltar para Portugal para aqui criar a filha pequena, a relação com a natureza e a imersão no mundo dos vinhos ficaram como marcas a imprimir no projeto de família. A carta de vinhos não ignora os portugueses, que foram “uma agradável surpresa” no regresso ao país, mas também enaltece alguns projetos franceses que José e Cláudia conheceram de perto.
Na cozinha, os ciclos da natureza são os maiores organizadores dos menus e vai-se gerindo o excesso e a escassez através de conservas, fermentados, inspirados em todas as culturas que os fazem — do kimchi coreano à nduja italiana.
“Um pouco antes da época dos espargos, já estou a ansiar por eles, por isso vou buscar os preservados do ano passado e ponho-os num prato. Vai chegar uma altura em que vou estar a usar os espargos preservados e os frescos no mesmo prato”, exemplifica José a forma como vai trazendo os ingredientes à carta.
O clima português é mais generoso do que o do Centro ou Norte da Europa e, no Ciclo, não há tanto uma intenção de estender épocas de ingredientes através das conservas, mas antes de complexificar aqueles que estão em época.
Alguns destes fermentados têm cinco anos e são um património que acompanha o casal desde França. Assim se fazem umas viagens ao passado e a biografia pessoal entra pelo restaurante na nduja de javali que um senhor do Alentejo lhes ofereceu ou nos limões preservados que apanharam na Serra da Estrela.
O prato de morangos, ervilhas e espargos, por exemplo, cruza três anos de produtos: espargos preservados com dois anos, um molho de morangos com um ano e ervilhas e morangos frescos.
Estes anos de fermentação são também uma expressão da tentativa de não ter desperdício na cozinha. José Neves não quer falar em zero desperdício, mas garante que aqui não se desperdiça o que pode ser valioso — não por moda, mas porque é “a minha forma de pensar”, de gerir a cozinha e a casa.
Apesar dos preservados, o que sai da cozinha tem um traço fresco iminente. Vejam-se os brocolinis servidos com couve penca, laranja sanguínea, kumkat fermentado e um caril feito com casca de laranja e caril — uma salada criativa que contrasta com um mais clássico pato com molho de vinho tinto.
A conjugação é habitual e antiga e, no Ciclo, vem com puré de beterraba, folhas de acelgas e a acidez ligeiramente picante de um kimchi para uma variação oriental.
“Também gostamos dos clássicos, mas com a nossa identidade”, atira José Neves, autor da abrótea à Zé do Pipo, a versão gastronómica do Brincando aos Clássicos de Ana Faria. Mas que identidade é essa? “Saber olhar para a natureza e para o que ela nos dá e saber usar isso com tradição, brincar com a emoção. Já tive pessoas a emocionarem-se com um puré que feijão que fiz e a ideia sempre foi essa: remontar àquela feijoada que família, que fica a fermentar um bocadinho em cima do fogão. Quando conseguimos emocionar estamos num bom caminho”, resume o cozinheiro.
Com apenas duas pessoas na cozinha para mais de vinte lugares, todo o dia é dedicado à preparação do jantar. Tudo está meticulosamente no lugar certo para que a hora do jantar continue a ser a mais divertida do dia, concordam José e Cláudia.
“Eu sou muito metódico: a colher está do lado esquerdo porque vou agarrar nela com a mão esquerda”. Como num desporto de alta competição, qualquer segundo que se ganhe é bem-vindo, é menos um a atrapalhar o resultado final. É mais um segundo para ficar a olhar para as Estações.
Ciclo. Largo das Olarias 42, Lisboa. Quarta a Sábado, 19.00-00.00. Telefone: 963 691 234
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