Partilhar

Nuno Mendes volta a Lisboa

Restaurante "Santa Joana" (Lisboa)

Nuno Mendes volta a Lisboa: “Deixei de fazer restaurantes que são templos gastronómicos. Quero fun dining.”

19/12/2024

Texto: Catarina Moura

Fotografia: Arlei Lima

Divulgador e amante de Lisboa em Londres, Nuno Mendes está de volta à sua cidade no restaurante Santa Joana. Está na sua era pós-fine dining: pratos desafiantes, ambiente livre e divertido. 

Como nas histórias mitológicas, o viajante volta sempre à sua cidade de partida. Nuno Mendes parece mesmo um Ulisses que, não tendo fundado Lisboa, não consegue (nem quer) esquecer este seu lugar. Depois de escrever um livro sobre a cultura gastronómica da cidade e de levar a gastronomia portuguesa a Londres em vários projetos, Nuno Mendes regressa à capital portuguesa para celebrar a sua multiculturalidade no restaurante Santa Joana.

Nuno Mendes regressa a Lisboa com o restaurante Santa Joana
Nuno Mendes regressa a Lisboa com o restaurante Santa Joana

Deixou Lisboa em 1992, ainda adolescente, para estudar e viajar. Nunca voltou a viver na sua cidade natal e, entretanto, trabalhou em grandes restaurantes, abriu os seus espaços e ganhou projeção em Londres, aproximando essa cidade dos sabores portugueses. É um divulgador do nosso receituário — ou pelo menos, “tento ser”, diz. Em 2017 lançou, pela britânica Bloomsbury, Lisboeta, livro para “celebrar a cidade e a cultura gastronómica portuguesa” (em Portugal, publicado pela Casa das Letras) e, depois da pandemia, abriu o restaurante independente com o mesmo nome, Lisboeta, em Londres.

 O restaurante faz parte do hotel Locke de Santa Joana, perto da Avenida da Liberdade, em Lisboa
O restaurante faz parte do hotel Locke de Santa Joana, perto da Avenida da Liberdade, em Lisboa

A reaproximação a Portugal depois de décadas de viagem trouxe-o, em 2019, ao BAHR, restaurante do Bairro Alto Hotel, no Chiado (saiu em 2022), e à Cozinha das Flores, no Porto, restaurante do hotel The Largo. Agora, é a vez do Santa Joana no Locke de Santa Joana. Este hotel ocupa um antigo convento na zona de Santa Marta, junto à Avenida da Liberdade, e inclui diversos conceitos de bar e restaurante — uma espécie de pequena cidade onde Nuno Mendes e o head chef Maurício Varela servem produto nacional temperado com o mundo.

Na presa de porco alentejano com pasta de nozes estufadas e nabos confit, nos mexilhões de Sagres fumados com batata nova assada e molho de alho verde ou no robalo grelhado, caldo à Bulhão Pato e alliums tostados, há ideias portuguesas sem preocupação com a tradição. Afinal, está na altura de Nuno Mendes se divertir.

Presa de porco alentejano, pasta de nozes estufadas e nabos em confit
Presa de porco alentejano, pasta de nozes estufadas e nabos em confit ©Charles McCay

No universo globalizado da restauração, ainda é diferente abrir um restaurante em Lisboa?

Muito! Esta é a minha cidade natal, tenho uma paixão enorme pela cidade e para mim é um luxo abrir em Lisboa e trazer o meu banco de memórias, das minhas viagens e da minha experiência. O primeiro luxo é usar o produto: não tenho acesso a este produto tão fresco e de forma tão fácil como tenho aqui. Tudo o que são frescos vêm de um raio de uns 300 quilómetros.

Essa diferença nota-se mais em que produtos?

Não temos por agora no menu, mas quero começar a usar os percebes, os ouriços do mar. Nota-se na gamba da costa, a lagosta, o lavagante azul... o porco alentejano ou os salmonetes de Peniche ou de Sines, as ostras do Sado ou da Ria Formosa. Aqui posso celebrar essa proximidade.

Robalo grelhado, caldo à Bulhão Pato, alliums tostados ©Charles McCay
Robalo grelhado, caldo à Bulhão Pato, alliums tostados ©Charles McCay

Em Londres é um divulgador de Lisboa. Aqui esse papel também faz sentido?

No Bairro Alto [BAHR], quando olhava à minha volta, sentia que havia pouca gente a celebrar a cultura gastronómica portuguesa em restaurantes com uma certa ambição. Senti também a paixão de conseguir usar os produtos locais. Lisboa mudou muito, pelo menos vejo uma maior vontade de chefs mais jovens celebrarem a cozinha portuguesa e olharem para dentro em vez de olharem para fora. No Santa Joana já não senti a necessidade de ser ferozmente inspirado pela tradição.

Que restaurante é o Santa Joana?

É um restaurante muito contemporâneo, boémio, que promove o produto português, mas que também reflete no que é a dispensa de Lisboa em 2024. É linda! E eu gosto de celebrá-la. Nesse aspeto, a Lisboa de hoje é diferente da Lisboa antiga e gosto dessa multiculturalidade. A âncora é o produto, muitos pratos começam com ideias tradicionais, mas agora temos mais liberdade. Não porque me tenha sentido preso, mas porque olho para a Lisboa de hoje e tenho esta nova dispensa — os molhos de peixe, as sojas, chili paste, chipotle, miso, os dashis. Tem também muito a ver com o meu palato, gosto desses sabores. É uma viagem gira e não queria repetir-me em relação ao BAHR ou à Cozinha das Flores.

Aqui ouve-se Sonic Youth, Tom Waits ou António Variações
Aqui ouve-se Sonic Youth, Tom Waits ou António Variações

E em relação a Lisboeta em Londres?

O que fazemos lá tem lógica lá, mas aqui não teria. É uma cozinha portuguesa à distância: muito inspirada por Portugal, mas cada vez mais inserida na cultura gastronómica local e com produto local interpretado à portuguesa. O Lisboeta é cada vez mais um restaurante londrino, urbano, pela decoração, pelo facto de teres várias modalidades — sentas-te ao balcão, na adega, ou na sala — pela música de Sonic Youth a Tom Waits a António Variações. Celebra a minha paixão pela música e pela cultura. Há algum tempo que deixei de fazer restaurantes que são templos gastronómicos. Acho que foi o que fiz aqui também, o Santa Joana é um restaurante divertido, boémio, cosmopolita, onde queres passar a noite. Podes entrar, comer qualquer coisa e depois ir para um bar ou podes ficar aqui mais tempo. É um restaurante livre.

Tártaro de vaca maturada, nabos marinados em nata fresca, pinhões. As ostras vêm da Ria Formosa, Ria de Aveiro e do Sado ©Charles McCay
Tártaro de vaca maturada, nabos marinados em nata fresca, pinhões. As ostras vêm da Ria Formosa, Ria de Aveiro e do Sado ©Charles McCay

Não quer fazer fine dining.

Quero fun dining, onde as pessoas vêm para se divertir, passar um tempo fixe.

Por que é que deixou de o interessar?

Estou um bocado cansado dos restaurantes em que te sentas e não tens escolha — principalmente no pós-covid. Daí a abertura do Lisboeta: fazer um restaurante que não tinha muitas regras. Muitas das experiências fine dining são muito formais e acho que a formalidade da gastronomia é um inimigo da paixão. A experiência deixa de ser relaxada e divertida. Neste momento não sinto a necessidade de me expressar dessa maneira.

Nuno Mendes com o head chef Maurício Varela
Nuno Mendes com o head chef Maurício Varela

O que une todos os seus restaurantes? O que faz o cliente dizer “isto é um restaurante do Nuno Mendes”?

Não sei, sinceramente. As pessoas sabem, parece que reconhecem, mas eu não sei responder a isso. Gostava que fosse, honestamente, a forma como as pessoas foram recebidas.

Não é algo que está no prato?

Também está, mas é sobretudo como as pessoas são recebidas. Tenho uma paixão enorme pela cozinha, mas....

Tem uma paixão maior pela restauração?

Adoro criar restaurantes, criar experiências que sejam diferentes, que se conectem com as pessoas de uma maneira interessante. O prato só faz sentido no mise-en-scène certo, se não, está deslocado. É uma paixão pela hospitalidade, pelo bem-receber, é isso que me atrai e que me continua a motivar. É por aí que começa o que queremos criar aqui, não é 'que prato é que eu quero fazer?'. Já não sou assim há muitos anos.

Arroz de Marisco caldoso, caranguejo e lavagante nacional; e Camarão do Algarve, corações de alho francês, óleo de folha de lima ©Charles McCay
Arroz de Marisco caldoso, caranguejo e lavagante nacional; e Camarão do Algarve, corações de alho francês, óleo de folha de lima ©Charles McCay

No caso do Santa Joana, estar na igreja de um antigo convento teve influência?

Logicamente. Isso é uma conversa que está agora a começar e que quero alargar ainda mais com a Maria Ramos, chef de pastelaria. Ando a falar há não sei quantos anos de doces conventuais. Tem de ser, finalmente estou num convento! Não quero ir ver o que é que se cozinhava em 1700 e tal, mas tentámos procurar receitas conventuais daqui — até agora não encontrámos nada.

A pujança dos doces de ovos é pouco explorada pela alta cozinha, é sempre bastante amenizada.

Pois... just fucking go for it! Serve menos mas serve.

Vamos ter viagens ao passado, então?

Talvez um dia chegue ao ponto de olhar para o passado e interpretá-lo aqui. A única coisa que eu ainda não fiz e não sei se vou fazer: cresci na Lisboa dos anos 1980, era muito diferente da de hoje, uma Lisboa em que estes edifícios estavam abandonados, em que as pessoas estavam todas a tentar sair, havia a epidemia das drogas. Ser jovem aqui era não ter futuro. Nunca consegui falar disso a sério.

Relaxado, divertido, boémio, é assim que o chef define o novo espaço. O design de interiores está a cargo de Lázaro Rosa-Violán.
Relaxado, divertido, boémio, é assim que o chef define o novo espaço. O design de interiores está a cargo de Lázaro Rosa-Violán

O lado mais escuro de Lisboa.

Sim. Nessa altura passava muito tempo no Bairro Alto. Havia núcleos contra-corrente, aqueles grupos de pessoas unidas e completamente contra o sistema, contra tudo e todos. Houve muita beleza que foi criada nesse espaço, devido a esses refúgios insulares de expressão super liberal e criativa, quase o máximo oposto do contexto em que estavam. Ainda não consegui interpretar isso, não sei se um dia conseguirei, mas quero falar disso... talvez tentando celebrar a parte bonita, caótica, criativa da Lisboa desses tempos.

Costeleta De Vaca Grelhada, Piso de Ervas Frescas e Tutano ©Charles McCay
Costeleta De Vaca Grelhada, Piso de Ervas Frescas e Tutano ©Charles McCay

No Lisboeta, em 2017, escrevia que a restauração da cidade estava mais interessante, com novos chefs e cozinha do mundo. Que retrato faz hoje de Lisboa?

Eu vivi numa Lisboa em que parecia que estávamos a esconder-nos, tudo o que era português era mau e tudo o que não era, era melhor. Eu vivi com isso e detestei. Acho que também foi a viagem que me trouxe a apreciação do que nós temos, o reconhecimento e a saudade. Acho que isso mudou muito, já há um orgulho visível. O ambiente gastronómico está cada vez mais forte. Há muita coisa e às vezes preocupo-me com a quantidade... A cidade está a ficar saturada e podemos chegar ao ponto de não haver staff e a qualidade das coisas deteriora-se.

Alguns donos de restaurantes falam em falta de trabalhadores e até mesmo de clientes.

Sim... O que é preocupante é que nesta cidade o que se está a abrir já não contabiliza o cliente local.

Nuno Mendes e Maurício Varela abriram as portas do Santa Joana em outubro
Nuno Mendes e Maurício Varela abriram as portas do Santa Joana em outubro

O cliente local foi uma preocupação aqui?

Sim. Eu queria, como na Cozinha das Flores, que os Lisboetas viessem aqui e sentissem orgulho do espaço, não fosse um espaço proibitivo ou arrogante, que pudessem divertir-se e passar um tempo porreiro. Não é só para o cliente internacional: apesar de estarmos num hotel, temos uma porta para a rua. Logicamente o poder de compra do público português… preocupa-me. Temos de praticar preços que reflitam o sítio onde estamos, o staff que temos, todos os detalhes, mas é muito importante também que seja um sítio acessível.

Depois destes anos todos a trabalhar à volta de Lisboa, aquela carta de amor do livro, ainda faz sentido?

Claro! Adoro Lisboa. Infelizmente neste momento não posso, porque os meus filhos vivem em Londres, mas gostava de voltar a viver cá.