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Lídia Brás é uma mulher que tem proa, que é como quem diz orgulho, na sua lhéngua e questumes. Dela podemos esperar um caloroso «Bienbenidos al Stramuntana» sempre que cruzarmos as portas do seu restaurante, o Stramuntana, um cantinho de Trás-os-Montes em Vila Nova de Gaia onde se respira a cultura mirandesa em cada detalhe. Agarrada à grelha e aos potes de ferro que mantém vivos ao lume, tal e qual a sua avó fazia na casa de Estevais, aldeia do concelho de Mogadouro, Lídia recorda o lugar onde cresceu.
«Tive a melhor infância que se podia ter. Brincava ao ar livre, conhecia os animais e comia o que a terra dava em cada altura do ano». Ela, sendo uma «criança de terroir», como refere, aprendeu cedo que a natureza tinha os seus ritmos e caprichos: que a Churra Galega Mirandesa, raça nascida do cruzamento das ovelhas autóctones com os carneiros trazidos pelos Celtas, não produzia leite, que o Canhono Mirandês (nome dado ao cordeiro desta espécie) não se dá bem nos meses muito frios nem nos muito quentes e que a geada do inverno era boa para a penca e para os grelos.
A quem visita o Stramuntana, é-lhe prometido a transmissão deste conhecimento empírico com uma hospitalidade tão generosa quanto as quantidades de comida que chegam à mesa. «Não sabemos fazer doses pequenas», adverte, com malandrice de nina. Dizer a uma transmontana que sirva poucochinho é como pedir a um estorninho para cantar baixinho. Nem vale a pena resmungar. Quando damos por ela, já nos é pousada na mesa uma torrada feita nas brasas de pão caseiro com azeite e alecrim e umas pataniscas rechonchudas como nuvens. Até apetece ficar por aqui, de tão simples e bom que é, mas há mais coisas boas para provar.
Na carta, escrita em português, mirandês e inglês, os pratos vão variando ao sabor das estações, mas há referências que facilmente podemos encontrar o ano todo, como a Posta à Stramuntana, feita a partir de uma peça de entrecôte, o Folhado de Vitela com Cogumelos e o Arroz de Polvo no forno. L nuosso ye treminado ne l forno; mantenendo algua houmidade i an simultáneo ua cápia tostada, escreve Lídia na sua página de Facebook «O qué nacional é Bô!», uma espécie de blogue com curiosidades sobre os produtos e costumes do nordeste transmontano.
Feito numa travessa de barro negro de Bisalhães, o arroz de polvo de Lídia agrega técnicas de várias cozinhas: o toque picante vem do Togarashi, uma mistura de especiarias de origem japonesa, e a capa crocante é inspirada no socarrat, nome dado à parte caramelizada do arroz da paella valenciana. «É um arroz de assinatura», elogia Fernando Araújo, marido e companheiro inseparável de Lídia no Stramuntana, ao qual aporta alguns clássicos da cozinha do Minho, como bom minhoto que é. A ele lhe devemos as Papas de Sarrabulho e a Cebola Doce em Vinho Verde Tinto.
Outra das grandes estrelas do restaurante é o fumeiro, em especial o Butelo com Casulas (cascas de feijão secas que também dão um caldo rico de carnes), a alheira na brasa e o azedo. «É um enchido feito com a massa da alheira, mas com menos alho e sem colorau. É feito no intestino grosso e é muito mais volumoso», explica Lídia, trazendo-o para a mesa com batatas cozidas e grelos, «que é como deve ser servido».
Qualquer tentativa de meter batatas fritas e ovos estrelados ao barulho será olhada de soslaio, porque se há coisa que o azedo – e a alheira, já agora – não precisam é de frituras que os tornem indigestos.
Se por um lado, Lídia é incansável na busca de novos saberes e sabores, por outro, mergulha a fundo nas origens, qual antropóloga, para resgatar costumes praticamente enterrados pelo tempo. O cuscos transmontano, herança do Norte de África que aterrou em Vinhais e Bragança graças aos judeus que lá se instalaram, é exemplo desse esforço em manter viva a memória.
Dada a sua raridade e morosidade de feitura, nem sempre dá para os saborear no Stramuntana, mas quando os há, são cozinhados com enchidos, ervilhas e couve, como se fossem um arroz caldoso. Podem acompanhar o pato com cogumelos, a barriga salgada ou até a posta.
Outra tradição mirandesa praticamente esquecida é a do fumeiro de vaca. «Antigamente, só havia cordeiros e vacas [em Miranda do Douro]. Praticamente não havia porcos», recorda Lídia, explicando o porquê do pildracho (língua de vaca fumada e fatiada finamente como se fosse muxama de atum) ter sido, em tempos, mais popular do que o salpicão ou o chouriço.
«São produtos que se perderam e que eu gostava de resgatar e de certificar, para deixar para o futuro». Fernando, que acompanha Lídia nas suas ideias, dá o mote, desenvolvendo uma cecina de wagyu que derrete o olhar. «Está praticamente pronta», diz, apontando para a peça marmoreada pendurada numa sala climatizada, onde mora a extensa garrafeira do restaurante. Imaginação não lhes falta e gosto em apaparicar os clientes também não, a quem lhes é pedido apenas que respeitem o tempo da refeição. «Nós trabalhamos com tempo, a par da natureza».
Longe de se apequenitar nas suas raízes ou de se perder em conceitos alheios, o Stramuntana é, assim, um restaurante orgulhosamente tradicional, mas sempre curioso ao que está a montante das terras de Miranda. É a cara chapada de Lídia Brás, a tal criança de terroir que não se inibe de ir à Foz do Sabor perguntar à «Tia» Lucinda Carromão, do Café Lameirinho, como é que faz os seus deliciosos peixinhos do rio, nem de acumular formações que lhe vão enriquecendo o léxico culinário e que lhe permitem criar coisas tão invulgares como um pudim doce de grelos, para lhambuzar. «Os pratos tradicionais têm de ser mantidos, mas sempre a pensar em elevar a gastronomia».
Stramuntana Gaia. Rua de Soares dos Reis, 903, Vila Nova de Gaia. Segunda a Sábado das 12h15 às 15h00 e 19h15 às 22h15. Domingo das 12h15 às 15h00. Telefone: 934 879 228