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Roteiro gastronómico

Onde comer cozido à portuguesa em Lisboa

Na tasca, no bistrô ou no buffet: 3 formas de comer Cozido à Portuguesa

19/12/2024

Texto: Tiago Pais

Fotografia: Tiago Pais

Nos meses mais frios do ano, o anúncio cola-se semanalmente à janela de muitos restaurantes de todo o país: “Há cozido à portuguesa”. Mas não há apenas um cozido à portuguesa, nem há apenas uma forma de servir e comer cozido à portuguesa. Apresentamos três, assinalando as respectivas diferenças.

O Nobre: o buffet clássico

As temperaturas anormalmente altas para esta época não afastam os clientes do cozido à portuguesa dominical no restaurante O Nobre, em Lisboa. É quase meio-dia, o telefone toca insistentemente e o chefe de sala de serviço nesse dia, Paulo Graça, desdobra-se em contas de cabeça para tentar encaixar os pedidos de última hora entre as mais de 100 reservas para o almoço.

No dia em que fomos ao Nobre, havia mais de 100 reservas para o almoço
No dia em que fomos ao Nobre, havia mais de 100 reservas para o almoço

O número impressiona, mas não é incomum: dia de cozido é sempre dia de casa cheia neste clássico lisboeta. “E ainda há os take-away”, acrescenta em voz alta à sua lista de deveres, enquanto a equipa vai trazendo da cozinha os tabuleiros recheados com os diferentes componentes do cozido que farão as delícias dos comensais daí a pouco. Esses tabuleiros – e uma grande panela com o caldo da cozedura – ficam expostos em sequência à entrada da sala principal de refeições, com um sistema rechaud a garantir que a sua temperatura se mantém constante, e a brigada na cozinha a trabalhar para as necessárias reposições.

Galinha do campo e entrecosto de porco preto figuram na variedade de carnes
Galinha do campo e entrecosto de porco preto figuram na variedade de carnes

N’O Nobre, o cozido à portuguesa (€38,8 p.p) é servido em formato buffet todos os domingos, a partir da primeira semana de setembro. A temporada dura enquanto o calor, ou a falta dele, o permitir: é assim desde a abertura do restaurante, em 2008, uma tradição que a chef Justa e o marido José Nobre já cumpriam noutros espaços onde ao longo de várias décadas na restauração da capital emprestaram o seu nome e talento, como na Ajuda ou em Alcântara.

O cozido à portuguesa é servido em formato buffet
O cozido à portuguesa é servido em formato buffet

O caldo vai apurando desde cedo — as preparações começam logo às 7 da manhã — com os diversos ingredientes mergulhados por turnos, sempre respeitando os respectivos tempos de cozedura. A matéria-prima chega de várias regiões: os enchidos, por exemplo, são beirões, com excepção do chouriço mouro alentejano. A variedade de carnes é assinalável, com direito a galinha do campo e entrecosto de porco preto. Outro ingrediente pouco habitual nas receitas continentais, mas que aqui tem lugar marcado no tabuleiro dos legumes é a batata-doce.

Na Taberna do Calhau, em Lisboa, há cozido ao estilo alentejano
Na Taberna do Calhau, em Lisboa, há cozido ao estilo alentejano

Taberna do Calhau: menos é mais no bistrô

De facto, e apesar de a designação “cozido à portuguesa” ser unânime, a receita – ou, pelo menos, os ingredientes participantes – está longe de o ser. Cada região do país põe o que de melhor e mais local tem na grande panela borbulhante do cozido, sobretudo quando falamos de carnes e enchidos. E isso nota-se, por exemplo, na versão que Leopoldo Calhau tem servido nas últimas semanas na sua Taberna do Calhau de sexta a domingo (€25).

Leopoldo Calhau serve o cozido na travessa e o caldo e o arroz em malgas de barro
Leopoldo Calhau serve o cozido na travessa e o caldo e o arroz em malgas de barro

“Isto é comida de fim-de-semana. Quando era miúdo, lembro-me de sair de manhã para ir jogar basquetebol e quando voltava a casa, a minha mãe tinha o cozido pronto na mesa.” Sendo a família de Leopoldo do Baixo Alentejo, não é de estranhar que o seu cozido seja mais próximo do cozido tipicamente alentejano. Inclui, por exemplo, carne de borrego, como é habitual na região, além de cacholeira e chouriço de carne da famosa Salsicharia Canense, perto de Sousel, da não menos famosa Dona Octávia, reconhecida mestre na arte dos enchidos artesanais alentejanos.

Há cozido de sexta a domingo na Taberna do Calhau
Há cozido de sexta a domingo na Taberna do Calhau

O cozido da Taberna do Calhau chega à mesa numa travessa de cerâmica, com o caldo e o arroz à parte em pequenas malgas. O empratamento é o tradicional. “Isto é o contrário do que eu costumo fazer: comida farta e com muitos ingredientes”, reconhece sorridente o arquiteto de formação Leopoldo, que sempre aplicou na sua cozinha um dos princípios mais citados da arquitetura: menos é mais. (“Less is More”, Mies Van Der Rohe). Uma das raras excepções a esse princípio era já o seu famoso cozido de grão, servido sob a designação “brunch alentejano”. “Esse fiz muitas vezes, mas cozido à portuguesa acho que fiz uma vez em dez anos”, refere, antes de acrescentar. “Mas o que eu quero fazer agora é isto: comida de tacho.”

N’A Vida de Tasca, em Lisboa, Leonor Godinho não deixa o cozido fora da carta
N’A Vida de Tasca, em Lisboa, Leonor Godinho não deixa o cozido fora da carta

Vida de Tasca: o habitat natural do cozido, a tasca

Leopoldo não é o único a demonstrar um renovado apreço pelos tachos. Leonor Godinho levou-o ainda mais longe, tendo transformado em maio deste ano uma tasca de bairro que já frequentava, a Casa do Alberto, na sua Vida de Tasca. A cozinheira, que acumula o posto com a chefia do restaurante/bar Vago, é uma apreciadora confessa deste estilo de restaurante familiar – uma evolução das velhas tabernas e carvoarias – e parece apostada em provar que uma tasca pode vingar com preços e horários justos, tanto para clientes como funcionários.

O cozido é servido nas tradicionais travessas de aluminio
O cozido é servido nas tradicionais travessas de aluminio

O cozido à portuguesa (€13), claro, faz parte da fórmula. O primeiro que cozinhou e serviu na Vida de Tasca foi uma aventura. “Ainda tinha o fogão antigo, então só tinha dois bicos disponíveis”, conta. Aconteceu a uma sexta-feira, contrariando a lei das tascas, que o servem, geralmente, a meio da semana. O segundo já não foi assim: saiu à quarta-feira, o dia preferencial do cozido à portuguesa, e já foi feito no novo fogão da Vida de Tasca. Parecia fácil. O desembaraço de Leonor a lidar com as várias panelas explica-se pela sua experiência de vários anos nas cozinhas do hotel Altis Belém: “Como era tournant, tive muitas vezes de fazer cozido na Cafetaria.”

A Vida de Tasca faz uso de uma cozinha de apoio do outro lado da rua: é para lá que segue este caldo
A Vida de Tasca faz uso de uma cozinha de apoio do outro lado da rua: é para lá que segue este caldo

Na Vida de Tasca a responsabilidade é diferente. É o seu cozido, e para garantir que sai a preceito conta com os bons produtos do seu fornecedor habitual de carne, o talho O Naco. “Os enchidos deles são muitos bons, não preciso de ir procurar fora”, garante enquanto vai pescando esses mesmos enchidos do caldo onde ainda cozem algumas carnes e couves. O sócio de Leonor nesta nobre empreitada, Roberto Pinho, já colou na janela do restaurante o típico aviso “Há Cozido” e enquanto acaba de digitar e imprimir o menu com os outros pratos do dia, é recrutado para uma importante missão: transportar a enorme e pesada panela do caldo até à cozinha de apoio do restaurante. É assim a vida de tasca.