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Vamos começar pelo leitão. Não há como começar de outra forma. Que a especialidade bairradina é, de há vários anos para cá, um prato de assinatura do chef Ricardo Costa e que muito provavelmente o iríamos provar no seu atual menu de degustação, poucas dúvidas nos restavam. Que o chef decidisse apresentá-lo numa louça em forma de cara de porco, era algo que jamais nos tinha passado pela cabeça. Afinal, falamos de um dos restaurantes mais premiados do fine dining português, que, para além do mais, pertence a um hotel de luxo!
Ainda assim, ali estava aquele focinho a olhar para nós, tal e qual a cara de porco galhofeira impressa no papel das sandes de leitão que O Cabeças vende durante as festas de São João, junto aos carrinhos de choque e aos matraquilhos, na Rotunda da Boavista. Mas sabem que mais? Nunca em nenhum outro contexto estelar nos soube tão bem comer leitão. Ao décimo quinto ano a chefiar o Gastronómico do The Yeatman, Ricardo Costa assumiu o seu momento dadaísta: este era o urinol de Marcel Duchamp que a alta cozinha portuguesa precisava.
Horas antes, e longe de imaginarmos o que nos esperava, o chef de 45 anos partilhava connosco as suas considerações sobre o fine dining em Portugal, que, a seu ver, estava a ficar “sobrecarregado”: “Há muita gente a fazer muito semelhante e as pessoas começam a não ter paciência para estar três horas à mesa. Mais dia, menos dia, acho que este modelo ou é uma grande experiência e uma coisa fora do comum ou então tem de ser repensado”.
Repensar nem sempre é fácil. Muito menos quando existe a pressão dos prémios no contexto de um país, que, até há bem pouco tempo, tardava em crescer de forma consolidada no número de restaurantes distinguidos com selos reconhecidos internacionalmente. “De há 15 anos para cá notámos uma evolução muito grande na nossa gastronomia”, diz o chef natural de Aveiro, que passou a juventude entre as chanfanas, o leitão, a caldeirada de enguias e as sopas de pote dos pais e avós.
Se juntarmos a isso as questões de sustentabilidade (e aqui não falamos apenas na sustentabilidade ambiental, mas também da sustentabilidade financeira e das equipas), percebemos que o arrojo pode sair caro a muitos chefs-gestores que arriscam deitar por terra o seu trabalho à custa de uma ousadia mal compreendida pelo consumidor.
No caso de Ricardo Costa, há vários fatores que explicam o porquê de se sentir confortável no risco e de se permitir a gestos provocatórios: primeiro, a experiência de praticamente vinte anos a trabalhar em alta cozinha, 15 dos quais à frente da operação do The Yeatman. Segundo, o amadurecimento pessoal que o ajudou a superar obsessões de notoriedade, que mais não fizeram do que enchê-lo de frustração e de o restringir criativamente; por último e não menos importante, o grupo onde trabalha.
Sendo uma das companhias mais sólidas do mercado do Vinho do Porto, o The Fladgate Partnership não só lhe dá uma rede confortável para se atravessar com veleidades, como também o enche daquele admirável modo britânico de encarar a vida de não se levar demasiado a sério. “Tenho liberdade para criar”, frisa Ricardo Costa, admitindo que se sente motivado por estar “rodeado de gente boa e com energia positiva”.
A experiência do cliente é o principal foco do chef-executivo do The Yeatman: “Não é só a cozinha em si, mas sim um conjunto de fatores que incluem a vista, os vinhos, o serviço de sala e o circuito”. Sobre a vista, os olhos falam por si: com o Douro e o Centro Histórico do Porto ao nosso alcance, não há olhar que não fique saciado. Nos vinhos, departamento coordenado por Elisabete Fernandes, poucos hotéis e restaurantes se podem gabar de ter uma garrafeira tão completa como o The Yeatman, ao ponto da Wine Spectator já a ter destacado nas suas escolhas anuais.
Ora, isto permite que uma equipa de sala impecavelmente sincronizada e atenta, liderada pelo mestre Pedro Marques, surpreenda os clientes com vinhos sobre os quais os próprios conversavam alegremente, sem se aperceberem que um dos empregados estava a tirar nota de tudo para lançar um passo de magia mais adiante. Foi exatamente isso que nos aconteceu com o Dona Maria Grande Reserva 2016, trazido para a mesa pela mão do João, qual The Bear, para harmonizar o leitão. No capítulo das harmonizações, há dois tipos de paring disponíveis, para além do suplemento não alcoólico (€100): o The Yeatman Selection (€130) e o The Prime Selection (€260) que nos pode brindar com raridades como um Vintage de 1966.
Quanto ao circuito, Ricardo Costa aproveitou as valências do hotel para criar três momentos durante a experiência gastronómica. O primeiro, de receção, acontece no bar, onde são servidos os snacks de boas-vindas, que incluem, entre outros, o icónico Lírio Nitro do chef, uma santola com gelado de wasabi que nos inunda de mar e de Japão, uma interpretação do Frango da Guia em modo sandwich e umas moelas tradicionais, sem truques, pingando para um prato de pedra com o formato de uma mão. Sim, as mãos são para se usarem e também para se sujarem, se o entusiasmo aí nos levar.
Depois vem o momento da cozinha, “minilaboratório” onde “nada se perde e tudo se transforma”: “É aqui que eu cumprimento os clientes”, diz Ricardo Costa, enquanto Ismael e Jorge, dois elementos da sua equipa, servem a ostra com granizado de maçã, foie gras e enguia fumada. Feitas as apresentações da equipa e das diferentes estações de trabalho, com um espumante Vicentino, retomamos à sala para o terceiro e último momento do circuito que é este Menu Colheita.
A ideia de colheita, explicara-nos o chef durante a tarde, relaciona-se com a evolução dos 15 anos de percurso do The Yeatman: “pretendemos continuar a semear para vir a colher”. A colheita é transversal do prato ao reconhecimento, admite Ricardo Costa, que alimenta a “ilusão” de arrecadar distinções ainda mais prestigiantes, sem que isso lhe devore o juízo e a sanidade mental.
Quanto ao menu em si, flui com graciosidade entre técnicas da cozinha do mundo, os sabores de conforto e a parte cénica, na qual o choco, empratado num cubo de gelo luminoso, mimetizando a luz do molusco no fundo do mar, é o maior laivo de espetacularidade. As tradições portuguesas são igualmente enaltecidas, seja em apontamentos como o molho à Bulhão Pato do Pregado, ou no resgate de memórias íntimas.
Aqui, temos de destacar o Bacalhau de meia cura com esparregado, brócolo desidratado, puré de grão-de-bico, folhas de nabiça e um caldo de mão de vaca com grão, perfumado com cominhos e com os ares de Trás-os-Montes, que é o abraço dos almoços de família que perduram no tempo e que não trocaríamos por nenhuma outra experiência gastronómica.
Antes do final, há ainda espaço para pão, azeite e manteiga sobre a mesa, uma tripa de Aveiro com chocolate, uma ode à pêra que António Rocha descobriu em 1836 na sua propriedade em Sintra, três petit fours que são um best of de antigas sobremesas do chef, um Tawny 20 anos tirado com uma pipeta de uma pipa de madeira e uma infusão de tomilho, salva, alecrim e laranja-limão para ajudar à digestão.
The Yeatman – Gastronomic Experience by Ricardo Costa. Rua do Choupelo, Vila Nova de Gaia. Terça a sábado, jantar (três turnos: 18h30 | 19h30 | 20h30). 220 133 100. €260 por pessoa