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Alzira destapa a tampa da panela. A cozinha enche-se de uma fumarola quente e arroxeada. «Está quase pronto», diz a olho, medida infalível de quem já tem 65 anos, boa parte deles a cozinhar polvo para a ceia de Natal. «Este é daquele que não minga» assegura, mostrando um tentáculo gordo que irá temperar com colorau.
Se hoje não há perigo em tê-lo à mesa, no Estado Novo arriscavam-se encontros com guardas-fronteiriços para que não faltasse o polvo nas festividades. Viviam-se tempos de contrabando na zona raiana do Alto Minho, de Trás-os-Montes e do sul da Galiza. O que havia de excesso de um lado, era levado para o outro.
Café, ovos, sabão, pantufas, cobre, azeite, bananas, tabaco, tudo servia para colmatar a miséria. No mês de dezembro, a procura pelo polvo, ex-libris da cozinha galega, disparava do lado português. Para muitos, era a única altura do ano em que o podiam saborear. «A minha família era pobre e tínhamos que esperar pelo Natal para se comer polvo lá em casa», recorda Alzira.
Histórias como a de Alzira e a do seu avô, que era barqueiro no Rio Minho e ajudou muitos portugueses a sair do país a salto, estão reunidas no Espaço Memória e Fronteira, em Melgaço. Lá fica-se a saber, por exemplo, que não raras vezes os guardas fechavam os olhos à passagem do polvo. Se o apreendessem, havia famílias que não ceavam no Natal.
Felizmente, a tradição do polvo resistiu à ditadura. Maria João Cerdeira, menina de 49 anos nascida um ano após a Revolução de Abril, sempre soube que na noite de 24 de dezembro haveria de o comer cozido, com batata e «as melhores couves da horta», e que no 25 ao almoço o polbo era servido em filetes, com arroz de feijão.
A esse costume, ao qual não faltam as rabanadas sem calda e os bolinhos de bolina, a família de Maria juntou-lhe um outro: o da abertura da garrafa Soalheiro da colheita do ano. «É sempre um momento solene», diz a responsável desta empresa familiar, que há 50 anos plantou a primeira vinha contínua de Alvarinho na sub-região de Monção e Melgaço.
É dessas parcelas originais que sai o Soalheiro Primeiras Vinhas, companheiro de eleição do polvo de Natal e dos convívios ruidosos de uma boa mesa minhota. «Toda a gente fala alto e crítica alguma coisa que o outro fez», diz Maria João Cerdeira, a sorrir. Até a aletria, saborosa como só uma aletria de ovos caseiros sabe ser, não foge ao reparo.
Picardias de amor há-las um pouco por todo o lado. Que o diga Paulo, com quem a mãe Lina protesta por não a deixar fazer o fumeiro na cozinha de casa. «Já lhe disse que vou preparar um armazém para o fumeiro», suspira, mas a mãe não fica convencida. «Qual é o problema de cheirar a fumeiro em casa?»
Talvez não houvesse nenhum, não fosse a Casa da Avó Chiquinha como é conhecida Lina em Montalegre, uma casa de alojamento local. E assim sendo, Paulo não quer que o fumeiro afugente os hóspedes. Porém, quem prova as alheiras de Lina pela primeira vez, feitas com boas carnes de porco, vitela e galinha caseira, nunca mais quererá fugir do sopé da Serra do Larouco.
Largando a contragosto a discussão do fumeiro, até porque o tempo ainda não está suficientemente frio para a matança do porco, Avó Chiquinha vira-se para a lareira, onde tem outros assuntos com que se preocupar. Há couves tronchudas e batatas kennebec, típicas daquela região, a cozer num pote de ferro e polvo a fervilhar noutro.
«Antigamente deixávamo-lo no fumeiro durante uma semana, até ao Natal» recorda a senhora de 79 anos, com vitalidade de catraia. Antes de cozinhar o polvo, conta, batia-o contra a pedra do tanque, «até ele ficar tenro». O deste jantar não precisou de tal trato, apenas de um Reserva Branco e de um Vinhas Velhas Mont’Alegre para o acamar com dignidade.
Os vinhos são cortesia do irmão de Paulo, Francisco Gonçalves, enólogo cioso em mostrar ao país que acima dos 600 metros também há videiras a fazer um brilharete: «São vinhos gastronómicos e têm muita frescura», diz, servindo mais um copo, enquanto Lina recupera as memórias do polvo.
O pai comprava-o a vendedores, que o traziam em cestas de vime debaixo do braço. Algum desse polvo chegava do litoral, outro vinha pela mão dos «homens de palavra» que o contrabandeavam: «era a palavra deles que veiculava o negócio».
Tal como em Melgaço, o contrabando era uma atividade enraizada nos costumes locais. Há até uma Rota do Contrabando em Montalegre, de 11 quilómetros, que passa pelas aldeias de Tourém e Randín e que recria um dos principais trilhos contrabandísticos da região.
Um pouco por todo o Trás-os-Montes multiplicam-se os pontos turísticos que evocam os tempos do contrabando, dos anos 60 e 70. Em Vilarinho dos Galegos, povoação de Mogadouro, vale a pena ir até ao Miradouro do Contrabando para admirar as escarpas do Douro. E se visitar Rio de Onor (ou Riohonor de Castilla, no lado espanhol) aproveite para trocar umas palavras com os poucos moradores locais, para quem o contrabando era tão comum como fazer patinagem nas águas geladas do rio, durante o inverno.
Já em Travanca, no concelho de Vinhais, Iracema Gonçalves lembra-se de o avô ir até à povoação galega de Manzalvos para comprar o polvo do Natal. «O polvo tornou-se numa tradição que foi ficando», diz a cozinheira do Geadas, restaurante icónico de Bragança, distinguido em 2016 pelo Guia Repsol.
Tal como a Avó Chiquinha, também Iracema batia o polvo no tanque para o amaciar. Depois metia-o na panela de ferro e, à parte, cozia as batatas, a couve penca e as rabas, tubérculo típico do nordeste transmontano. «Ainda hoje sou eu que preparo tudo. Nem os deixo tocar no repasto», diz com autoridade matriarca, referindo-se aos filhos Óscar e António Gonçalves, responsáveis por elevar o panorama gastronómico da região com o premiado G Pousada.
Óscar não se importa de deixar a jaleca de lado nesse dia. Para ele, o mais importante é poder partilhar a refeição com os pais e o irmão, coisa rara para uma família que dedicou a vida inteira à restauração e se habituou a comer a horas trocadas. O único «disparate» que se atreve a fazer é fritar pedacinhos de aletria dois dias depois do Natal. «Fica cremosa por dentro. É tão bom!».
No peru recheado e nos filetes de polvo albardados de dia 25 nem lhes toca, muito menos no congro ensopado, receita que Iracema debita de cor: «Ponho cebola, alho e azeite numa panela, e depois o congro aberto. Dou-lhe umas voltas, tempero-o com sal e aromáticas, bato umas gemas com salsa numa tijela à parte e junto-as ao congro, sem deixar levantar fervura», dita, cheia de despacho.
Ensopado, frito ou cozido, era muito comum encontrar congro ou raia no Natal das famílias transmontanas. O peixe, sendo um bem nobre, estava guardado para os dias especiais e chegava às aldeias através dos fornecedores do litoral, que o vendiam em feiras. Nenhum desses peixes, porém, tinha dedo de contrabandista. Para saltimbanco, já bastava o polvo.